"Transconstitucionalismo": o diálogo transversal entre Constituições

05/07/2025

Introdução


📍 Como diferentes tribunais, de países e contextos diversos, podem colaborar para resolver um mesmo problema constitucional?

📍 Como os direitos humanos, as mudanças climáticas ou o sistema prisional se tornaram temas que ultrapassam fronteiras?

📍 Como compreender, juridicamente, a convivência de múltiplos sistemas constitucionais diante de um mundo hiperconectado?

Essas inquietações conduzem ao conceito de Transconstitucionalismo, elaborado por Marcelo Neves, e que representa um marco teórico no constitucionalismo contemporâneo.


🌐 O que é o Transconstitucionalismo?

O Transconstitucionalismo é a teoria segundo a qual diferentes ordens jurídicas — estatais, supranacionais, transnacionais e internacionais — se entrelaçam para resolver, de forma cooperativa, problemas jurídicos constitucionais comuns, especialmente ligados aos direitos fundamentais e à limitação do poder estatal
.
Trata-se de um modelo que rejeita tanto a imposição unilateral de uma Constituição sobre outra quanto a pretensão de um sistema jurídico único e superior. O que se busca é o diálogo transversal, sem hierarquia, fundado na observação mútua, na crítica construtiva e no aprendizado recíproco.

🧠 "O Transconstitucionalismo implica o reconhecimento de que diversas ordens jurídicas entrelaçadas na solução de um mesmo problema constitucional devem observar-se mutuamente, a fim de compreender seus próprios limites e contribuir para a solução compartilhada do problema" — Marcelo Neves

🔎 Precedente vinculante ≠ Autoridade persuasiva

Um dos pontos centrais da teoria de Marcelo Neves está na natureza não vinculativa do diálogo entre constituições.

📌 Quando tribunais constitucionais dialogam entre si, não estão obrigados a seguir decisões uns dos outros. Ao contrário do que ocorre com os precedentes vinculantes — como a repercussão geral do STF —, nesse modelo o que impera é a autoridade persuasiva.


🕸️ Um mundo jurídico multicêntrico

Inspirado por Luhmann e Welsch, Marcelo Neves descreve a sociedade contemporânea como multicêntrica e policontextural, marcada por uma complexidade crescente, onde múltiplas ordens jurídicas coexistem e colidem.

Em vez de uma autoridade jurídica central, o que se observa é um sistema jurídico composto por diferentes centros de normatividade, que se observam mutuamente. É nesse cenário que emerge o Transconstitucionalismo como uma resposta realista, crítica e inovadora.


🧬 Da Constituição como acoplamento à racionalidade transversal

Tradicionalmente, a Constituição é vista como um acoplamento estrutural entre o sistema político (poder) e o sistema jurídico (direito), conforme a teoria dos sistemas sociais de Niklas Luhmann.

Contudo, Marcelo Neves propõe uma superação: para ele, a Constituição deve ser entendida como uma ponte de racionalidade transversal, isto é, uma estrutura que permite o diálogo entre diferentes racionalidades parciais (ex: justiça, democracia, segurança, liberdade), sem subordiná-las.

A racionalidade transversal permite que sistemas jurídicos e políticos diversos dialoguem sem suprimir sua autonomia, desenvolvendo mecanismos estáveis de aprendizado mútuo.

🌐 Transconstitucionalismo e Direitos Humanos

Os direitos humanos representam o campo mais fértil para a aplicação do Transconstitucionalismo.

📣 Após a Segunda Guerra Mundial, esses direitos passaram a ser reconhecidos como tema jurídico global, rompendo os limites do Estado soberano. Assim, problemas como tortura, racismo ou censura passaram a ser relevantes para múltiplas ordens jurídicas simultaneamente.

Segundo Neves, as controvérsias sobre direitos humanos atravessam transversalmente ordens estatais, supranacionais, transnacionais e locais. É nesse ponto que a cooperação judicial se torna inevitável, mesmo sem que haja um "tribunal mundial" hierarquicamente superior.


🌍 Casos práticos no Brasil


🟩 ADPF 347 – Estado de Coisas Inconstitucional

O STF reconheceu, pela primeira vez no Brasil, um "Estado de Coisas Inconstitucional" no sistema prisional, conceito importado da Corte Constitucional Colombiana.

🟦 HC 143.641 – Habeas Corpus coletivo para gestantes

Inspirado no caso Verbitsky da Argentina, o Supremo concedeu habeas corpus coletivo a mulheres grávidas e mães presas, mesmo sem previsão legal específica.

📌 Em ambos os casos, houve diálogo entre ordens constitucionais distintas, sem imposição hierárquica, mas com reconhecimento recíproco da autoridade argumentativa.


🧱 Limites e desafios

Apesar de sua sofisticação teórica, o Transconstitucionalismo não está imune a entraves. Marcelo Neves reconhece três grandes obstáculos:

➡︎ Desigualdade entre as formas de direito – ordens jurídicas de grandes potências (ex: EUA) frequentemente se colocam acima do Direito Internacional, recusando decisões externas;

➡︎ Ausência de mecanismos de sanção – muitas decisões externas têm efeito apenas inter partes, limitando sua efetividade;

➡︎ Tensões entre culturas jurídicas – o ideal de universalização dos direitos pode ser lido como ocidentalização do mundo, gerando resistência por parte de países com tradições distintas.

📍 Em resposta, Neves propõe a valorização da alteridade jurídica e da observação do ponto cego, ou seja, a capacidade de um sistema aprender com aquilo que não consegue ver sozinho.


👁️‍🗨️ O que são "pontos cegos" neste Contexto?


📌 No caso do direito constitucional, um tribunal ou uma Constituição pode estar convicto de sua racionalidade interna, mas incapaz de perceber os limites, lacunas ou vieses de sua interpretação, justamente porque está **imerso na própria lógica que criou.

🧠 O ponto cego na obra de Luhmann e Foerster

Niklas Luhmann, ao falar do observador sistêmico, explica que todo ato de observação cria uma distinção (por exemplo, legal/ilegal), e essa distinção automaticamente gera um ponto cego, ou seja, aquilo que fica fora do campo de visão por causa da distinção feita.

Heinz von Foerster resumiu isso brilhantemente ao afirmar:

"O observador não pode ver que não vê o que não vê."


🎯 A ideia é que ninguém pode observar tudo ao mesmo tempo — o simples ato de selecionar o que é relevante já exclui outras possibilidades.


🧬 Aplicação no Transconstitucionalismo

✨ Marcelo Neves retoma essa ideia para propor algo profundamente inovador: se nenhuma Constituição consegue ver todos os ângulos de um problema, é necessário que uma observe a outra, para que, pela alteridade, revele-se o que estava invisível.

"O que o observador constitucional "A" não vê, o observador constitucional "B" pode ver — e vice-versa."


🧩 Resultado: aprendizado jurídico pela diferença

📘 Ao valorizar a alteridade jurídica, Neves está dizendo:

Não se trata de copiar o outro, mas de permitir que a escuta do outro revele em mim o que está obscurecido, possibilitando autocrítica e reconstrução interna.

O diálogo transconstitucional funciona como um espelho: ele nos devolve nossa imagem deformada, revelando aquilo que nossa Constituição, sozinha, não foi capaz de enxergar.


🔭 Caminhos futuros

Segundo o constitucionalista argentino José Roberto Dromi, o chamado "constitucionalismo do futuro" deverá ser orientado por sete valores fundamentais: veracidade, solidariedade, continuidade, participação, consenso, integração e universalização.

Nesse cenário, o Transconstitucionalismo é visto como o embrião de uma nova forma de racionalidade constitucional global, capaz de articular identidades diversas sem exigir uniformização.


Até a próxima! 👋